
Querido Francisco,
Escrevo-te sem saber como enviar esta carta, mas com a certeza de que me escutas mesmo assim. Afinal, tu escutavas a Deus no silêncio. Durante muito tempo, fui acumulando perguntas para te fazer. Sobretudo queria perceber que força é essa que faz de ti uma pessoa tão bonita, tão simplesmente bonita. Escrevo-te para te fazer as perguntas que olhar a tua vida suscita em mim. Talvez escute as respostas no silêncio em que habita Deus.
Querido Francisco,
Como é Deus?
Quem é esse que escutas no silêncio?
Sei que disseste que isso nunca se pode dizer. Adivinho que te faltassem as palavras para dizer Deus. Adivinho também que todas as palavras sobravam. Como é que se diz o que não cabe nas apertadas fronteiras das palavras? Como é Deus?
Recordo que a tua mãe conta, a propósito da muita vontade que tinhas de comungar, que ficaste «com pena do Senhor Prior [te] mandar embora sem [te] dar a comunhão por [teres] errado um ponto do “Creio em Deus Padre”»[1]. E, ainda assim, Francisco, mesmo não sabendo o credo de fio a pavio, parece-me que sabias o essencial: que Deus não se pode dizer. E que Deus não se pode deixar de dizer.
Olho a tua vida e parece-me que se abriu no teu interior um espaço de silêncio que te diz melhor do que qualquer palavra. Estranhamente, fico a achar que esse espaço de silêncio diz tão bem como é Deus. Tenho, aliás, para mim que foi o Silêncio de Deus quem escavou esse lugar em ti e aí deixou saudades e o eco do seu nome segredado na amizade íntima. Ó Francisco, tu não voltaste a ser o mesmo. Mesmo a tua irmã Jacinta e a tua prima Lúcia estranhavam:
– Porque não vens brincar connosco? – perguntavam.
– Porque estou a pensar em Deus – dizias. E parecias acrescentar: – Este poço de silêncio no meu interior arde-me por dentro e o coração parece-me saltar do peito com o desejo de me oferecer por inteiro a este meu amigo escondido. Sabeis? O meu peito é como aquela sarça ardente com quem Moisés falou... E, olhem, não sei mais que diga, que só o silêncio descreve o beijo que Deus me dá e pelo qual anseio como veado sedento.
Descobriste o silêncio naquele encontro com um jovem vestido de luz que parecia ser um anjo. Assim começa tudo o que vale a pena na vida, não é? Num encontro iluminado, que ofusca ao ponto de, de aí em diante, nada se ver se não essa luz. Nesse dia, Francisco, olhavas aquela presença luminosa tão bela, mas não ouvias o que ela dizia. Era a Luz quem te falava em silêncio, com palavras que não se dizem, que não se podem dizer nunca.
Creio que te sentiste transformar interiormente. Quando olho a tua vida, parece-me que era como se toda ela fosse aquele encontro. Diz-se que os místicos vivem assim, suspensos no agora de Deus. Foi assim contigo.
Daí em diante, a tua vida toda orientou-se para aquela amizade primeira que te cativou. Simplesmente porque não sabias já ser de outra forma. Como poderias ser de outra forma? Faltam as palavras para dizer esta amizade. Sobram as palavras para dizer esta amizade.
Diz-me, Francisco, foi o silêncio quem te ensinou a felicidade?
Acho que a tua vida breve foi como a do profeta Elias no monte.
Quando a palavra de Deus pediu a Elias que saísse da caverna onde ele ardia de zelo e subisse ao monte onde Deus iria passar, ele certamente esperava encontrar o Senhor dos Exércitos, capaz de derrotar e exterminar os filhos de Israel teimosamente infiéis à aliança. Elias terá estranhado que Deus não estivesse no vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e os rochedos, nem no tremor de terra que abalava as fundações, nem no fogo consumidor que destruía tudo à sua passagem. É só no silêncio absoluto que Elias reconhece a Deus.
Ó Francisco, quantas vezes eu preferiria um Deus que escolhesse ser vendaval, terramoto ou fogo. Quantas vezes desejo um Deus que não deixe qualquer dúvida sobre o que significa ser Deus. E perturba-me este Deus que me pede que oiça o som do silêncio absoluto. Perturba-me porque me desinstala. Porque escutar o silêncio significa dispor-me à relação com um Deus que não está ao serviço do que eu quero que ele seja. Significa que, antes de tudo, sou chamado a escutar.
Francisco, tu ouviste o som do silêncio, como Elias. E converteste-te, para os que te rodeiam, para o mundo todo, em silêncio de Deus. A tua vida é um breve silêncio de Deus que me ensina que a salvação oferecida por ele não é mais um ideal falhado. O teu amigo escondido disse-nos tudo o que tinha a dizer no silêncio estonteante da crucifixão. Disse-nos, em silêncio, que Deus recusa salvar-nos pela violência. Recusa ser vendaval e terramoto e fogo, para que a vida seja frutífera. Não admira, Francisco, que tenhas desejado tanto abraçar a cruz no silêncio da tua vida.
Ó menino do silêncio de Deus, menino da escuta, menino de um só Senhor,
Como eu gostava de aprender contigo esta disciplina difícil da escuta do silêncio. Ensina-me, Francisco, as palavras que escutas no teu coração.
***
Querido Francisco,
Como é Deus?
E como se mede uma vida cheia de silêncio?
Quando me perguntam o que de ti devemos recordar, quais os teus gestos heroicos, as obras que importa apresentar ao mundo como exemplo e desafio, fico em silêncio. Perguntam-me como quem procura no peso das boas obras a medida da santidade. Quantas vezes me confundo a achar que é nas luzes da ribalta que reside a medida certa da felicidade. Quantas vezes faço da vida um tear complicado de cargos e de posições e de gestos e de aparências e de glórias e de dinâmicas de sucesso e de triunfo. Quantas vezes pretendo vestir a máscara do herói que se salva a si mesmo e ao mundo todo através da sua força imprescindível.
Engano-me, Francisco. O que a tua vida me ensina é que eu me engano. Porque, que feitos tens tu a apresentar? Tu não foste herói. Tu não viveste a tirania da eficácia e da conquista. A tua história não foi tua. E eu gosto tanto da banalidade da tua vida. Gosto tanto da tua santidade simples.
Talvez uma vida cheia de silêncio se possa medir com a transparência do Absoluto.
Quando me perguntam o que de ti devemos recordar, depois de eu fazer silêncio e sorrir com a minha teimosa mania de complicar o simples, gosto de responder que te devemos recordar como um menino preenchido pelo horizonte do Céu. Vejo-te centrado no que é essencial na vida. És o menino que compreende perfeitamente que a vida que tens te é dada para ser gasta numa relação que valha a pena. E tiveste a graça de descobrir essa relação no silêncio em que encontraste Deus. No silêncio encontraste aquele que se te revelou em silêncio.
A tua prima Lúcia conta-nos que quando, em agosto de 1917, o administrador de Ourém te disse que, se não contavas o segredo, te ia fritar em azeite, ela perguntou-te se tinhas medo. Conta ela:
Respondeu-me que não. Só se lembrou de que em breve estaria no Céu junto de Nossa Senhora e de Nosso Senhor de quem ele gostava tanto. Quando depois de eu ser interrogada, fui conduzida à sala onde se encontravam o Francisco e a Jacinta, o Francisco correu para mim perguntando-me se também eu ia ser frita em azeite. Respondendo-lhe eu, que sim, ele disse: «Não faz mal. Dentro em pouco estaremos no Céu, e de lá com certeza vemos os nossos pais».
Quando o mundo parece desabar e perdemos o chão, só aquele que habita o horizonte do Céu se lembra de que em breve o Céu será o seu tudo. Só aquele para quem o Céu é já tudo se recorda que o Céu o vem abraçar em breve. Só aquele que se deixa hoje habitar pelo Céu espera o Céu como quem respira. E quando respiramos o Céu não importa muito se a nossa história na terra se apaga no esconderijo, sem que o mundo pare para o notar. Não importa muito se os livros da história vão guardar o nosso nome ou se acabamos os nossos dias anónimos num quarto escondido ou até a fritar em azeite. Importa apenas que eu diminua e o Céu cresça em mim.
Ó menino escondido, menino da história de Deus, menino do Absoluto,
Como eu gostava de aprender contigo esse teu jeito de ser tão nu, tão simples, tão comprometido. Ensina-me, Francisco, a santidade simples.
***
Querido Francisco,
Como é Deus?
E como é, no Céu? O Deus que te falava no silêncio ainda te sussurra segredos? Ainda é luz que te cega e te preenche e te ocupa o horizonte?
Pergunto-me agora se, no dia quatro de abril de 1919, às dez da noite, foi a luz que viste.[2] Aquela luz para a qual, no dia anterior, chamaste a atenção da tua mãe: «olhe, mãe, que luz tão linda ali, perto do portal!». Disseste mais tarde à Lúcia que tinhas visto a luz de Nossa Senhora e que supunhas que era ela quem te vinha buscar. Que alegria, Francisco, ter a certeza de que a luz que é o próprio Deus te vem receber.
Fala-me da luz que habita os teus olhos, Francisco. Sabes, eu não creio que tenhas sentido diferença entre a terra e o céu. Tenho para mim que, desde que descobriste a amizade de Deus, viveste já o céu e que era por seres cidadão do céu que desejavas tanto mergulhar em Deus.
Creio que os teus olhos oferecem uma terapia ocular, uma higiene do olhar.
Francisco, eu até acho que tu cegaste. Ficaste cego da luz que é Deus. Não sei se vias outra coisa quando olhavas a vida, o mundo, as pessoas. Vias Deus, a luz que é Deus, a presença bela e boa que restitui a cor mesmo quando – sobretudo quando – tudo em volta é cinza. Quem contempla o Absoluto, não tem olhos para o assessório. Como eu desejo só ter olhos para o Absoluto!
Ó menino da luz, menino cego de Deus, menino cheio do Céu,
Como eu gostava de aprender contigo a deixar-me habitar pelo horizonte do Céu. Ensina-me, Francisco, o que veem os teus olhos.
Hoje, cem anos depois de teres abraçado definitivamente a Luz que viste em silêncio, digo-te o que te disse a Lúcia nessa noite: «não te esqueças lá de mim, ouviste?» Ainda me comove a tua resposta quando a tua prima te perguntou se querias mais alguma coisa. Disseste simplesmente, com voz sumida: «Não». Nunca quiseste nada mais, pois não, Francisco? Tudo o que querias estava ali a aproximar-se de ti e tocava o teu desejo do Céu com uma força indelével.
Por isso, Francisco, dá muitas saudades minhas a Nosso Senhor. E adeus, até ao céu. Também quero muito o céu. Também gosto tanto de Deus, o escondido, o silencioso. Até lá, vamo-nos encontrando no silêncio em que habita Deus e que é já Céu.
Fátima, 04 de abril de 2019, centenário da páscoa do menino que encontrou o silêncio em que habita Deus
Pedro Valinho Gomes