
Exposição de pintura em torno da vida e espiritualidade de S. Francisco Marto.
I.
O dia amanhecia naquele tom que eu tanto gostava de olhar. E pela janela do nosso quarto antevi que teríamos um dia luminoso. Já se ouvia movimento pela nossa casa e a Jacinta já estava à porta à minha espera. Já me tinha chamado umas três vezes: “Anda Francisco! Estamos atrasados! A Lúcia espera-nos!” Tínhamo-nos aventurado no pastoreio com a nossa prima há muito pouco tempo.
Chegamos ali, ao cimo da encosta da Cova da Iria. Não demorou um minuto até percebermos que era o lugar ideal para desfrutarmos da presença uns dos outros, enquanto o rebanho se saciava.
De repente vimos como que um relâmpago. Com medo que viesse trovoada, começamos a descer.
Descemos e Ela desceu também.
“Que Senhora tão bonita! Que Senhora tão bonita!” (MIL I, 45)
Parece que ainda ouço a Jacinta durante todo o caminho de regresso a casa.
A mulher mais brilhante que o Sol. Para mim, ainda escondida.
Vi-as ajoelharem-se... repeti o gesto como quem confia nos gestos dos amigos.
“Reza as contas, Francisco!” Percebi nas palavras da minha prima que as contas guardadas no bolso do meu casaco eram o “remédio” para os meus olhos.
Agarrei no meu rosário e comecei a desfiá-lo.
Que Luz. Que rosto. Que olhar tão delicado.
E ficou-se ali, tão perto, que ficávamos dentro da Luz que trazia.
(A metro e meio ou algo assim)
Falava. Falava, que eu bem via os lábios mexerem-se.
Falava mas... Não souberam os meus ouvidos o som da sua voz.
Este foi um dos mistérios da minha vida. Mas entreguei.
Olho para ti. És como eu.
Não ouvi, mas nem por isso me achei menor.
Não ouvi, mas nem por isso pus em causa a Deus e a sua bondade.
Não entendi, mas sabes, "a mim que me importa!" (MIL I, 137). A estes mistérios – e a outros – encontro, para eles, a paz e serenidade em Deus.Gosto tanto de pensar em Deus!
‘Não ouvir’ foi o Isaac que o Senhor me pediu.
Confiei e recebi.
Ouvir
Como se escuta o silêncio?
No exercício filial
que faz do olhar a gramática da entrega.
Cerrem-se os ouvidos
e o olhar falará da Luz
num caleidoscópio de cor.
Cerrem-se os ouvidos
e eu oiça a dança do coração
na festa da visitação.
II.
Desde que A vi os dias nunca mais foram iguais. Ganharam um sentido novo. Treze parecia-me agora ser o início do mês e, a espera pela Sua nova visita, era o modo de também amar a Deus, dentro do tempo (cf. Daniel Faria). E esperávamos ansiosos...
A nossa casa que era outrora o meu tudo, começou cada vez mais a ser lugar de passagem.
Lembro-me tão bem daquele agosto de dezassete, quando nos levaram para a prisão. Creio que foi aí que o meu coração mais firmemente ganhou raízes na casa do Pai. A minha irmã Jacinta chorava com saudades da mãe. Mas eu não sabia como era, o meu coração dizia: “A Mãe, se não a tornarmos a ver, paciência! Oferecemos pela conversão dos pecadores. O pior é se Nossa Senhora não volta mais! Isso é que mais me custa! Mas também o ofereço pelos pecadores.” (MIL I, 147) Tinha tantas saudades d’Ela!
Na casa do meu Pai há muitas moradas
e uma porta aberta.
Quem está à porta
entre sem bater,
que a festa é para sempre,
banho suave de luz
num entardecer sem ocaso.
III.
As serras da nossa terra. Como gostávamos de as contemplar. E cantávamos e dançávamos juntos. Os três. Cantávamos, em coro, “as alegrias da Serra” (MIL I, 142) como gostava de dizer a Lúcia! E tantas vezes agarrava do meu pífaro e tocava com o eco a prolongar.
Mas do que eu mais gostava... Sim, do que eu mais gostava era de “rezar sozinho” (MIL I, 148).
A minha irmã e a minha prima lá me chamavam: “Francisco, não queres vir?” Mas o “não” era a resposta que ditava o meu coração. “Deixem-me estar sozinho”. Levantava o braço e mostrava as contas: esse lugar de intimidade constante. (Cf. MIL I, 141)
Do penedo contemplava a bela criação: a cor no silêncio. E pensava em Deus... ‘Pensava-o triste por causa de tantos pecados! Se eu fosse capaz de Lhe dar alegria!’ (Cf. MIL I, 142)
Pode-se estar acompanhado na solidão?
Se o eterno é hoje
e o descanso mapeia o paraíso
com as contas da amizade,
a solidão é lugar onde vou
encontrar
quem a povoa o meu silêncio
desde a alvorada do meu ser.
IV.
Os passarinhos.
Como me alegrava ao “vê-los voar para o cimo das árvores, com o papinho cheio, a cantar” (MIL I, 158). Uma chilreada que eu tentava imitar, fazendo coro com eles.
Nem dava conta de o tempo passar ao contemplá-los, ao vê-los bater as asas, no recolher ao ninho. Tudo encantador.
Roubarem-lhes os ninhos, prendê-los ou apanhá-los como vi fazer uma vez... isso entristecia-me! Cheguei a dar 2 vinténs a um rapaz que me pediu em troca pelo passarinho. Poder ‘deixar ir’, em liberdade, é a maior alegria.
Ganhamos tanto, quando estamos dispostos a perder.
Quando vi voar o pássaro, bati as palmas de contente e disse-lhe:
“Tem cautela! não te tornem a apanhar!” (MIL I, 158)
Quando medires a distância entre as amarras e o voo
Com a coragem de quem deseja o infinito
Verás abrir-se um descampado de mil cores
E as tuas mãos falar a língua da alegria.
A alegria não prende.
A alegria não amealha planos e cálculos.
É o livre bater das asas.
É olhar grávido da promessa de liberdade.
A alegria nunca acabará.
V.
Em junho a Senhora de Luz tinha-nos dito que em breve eu iria para o céu.
O céu. Que alegria tremenda saber que aquele toque que já tínhamos experimentado ia ser, muito em breve, para sempre.
Era na Igreja da nossa paróquia que também O tocava de tão perto. Como eu gostava de “estar uns bocados com Jesus escondido” (MIL I, 156).
A Lúcia ia à escola e eu só queria ficar na Igreja, com Ele, escondidos.
Onde moras?
Faço morada na tua resposta,
que a tua presença é mapa
e tenda e repouso
e lugar onde reclino a cabeça.
No tesouro da tua resposta vive o meu coração.
E assino o meu nome no lugar da tua presença.
Já não sou eu quem vive,
mas vivo desta morada
em que nos abraçamos
até à identificação.
VI.
A Lua era para nós a candeia de Nossa Senhora. Tantas vezes nos púnhamos a olhar para ela, desde a velha eira. Brincávamos até que ela e as candeias dos anjos, as estrelas, se acendessem.
Como eu gostava de me pôr a contar as estrelas.
Mas nada, nada me encantava tanto como o lindo nascer e pôr-do-sol. Nenhuma candeia é tão bonita como a de Nosso Senhor.
A lua era bela para mim porque era essa passagem, esse reflexo da Luz de Nosso Senhor.
Quero ser como a lua
a abrir sulcos de luz nas ruas escuras da cidade.
Candeia da noite que traz saudades do dia.
E não me atrevo a subir ao muro
que se a lua brilha no alto
é apenas para prometer
o nascer do dia novo.
VII. A véspera da minha partida para o Céu.
Anoitecia o dia três de Abril de 1919. E da janela vi uma luz que me parecia ser a de Nossa Senhora. Desta vez fui eu que não me contive. (Que importava agora conter?) E disse à minha mãe: “Olhe, mãe, que luz tão linda ali, perto do portal!” (Testemunho do Cónego Manuel Nunes Formigão, Positio Super Virtutibus Francisci Marto)
E fiz memória da Luz... A Luz que Ela estendeu até ao nosso coração e ‘nós que ardíamos naquela Luz que era Deus e não nos queimávamos! Oh como é Deus!
Isso sim que a gente nunca poderá dizer.’ (Cf. MIL I, 145)
Que luz tão bonita naquela janela.
Seduz-me
como se me derrotasse na batalha
e eu nada mais desejasse do que render-me.
Desejo-te
como a amada deseja o seu amado
eternamente agora,
inteiramente todo.
VIII.
Enfim encostado ao peito de Jesus. Quanto desejei que‘Nosso Senhor me levasse pró pé d’Ele para O ver sempre’ (Cf. MIL I, 148).
Não queria palavras, na verdade amei-O sempre no silêncio. Queria o abraço. Queria consolá-l’O. Sempre.
Eu bem disse à Lúcia que não me pedisse nada para dizer a Nosso Senhor, eu tinha medo de me esquecer. Só O queria consolar. A Ele e a Nossa Senhora! (Cf. MIL I, 162)
É assim que hoje, no silencioso ventre de Deus, continuo a lembrar-te até ao Céu.
Quem consola quem
quando se abraçam os amantes
e se fazem um só sangue
e bebem o vinho
até à última gota?
Quem consola quem
quando os amantes se olham
e vendo o outro
se veem a si mesmos?
Quem consola quem
quando consolar e ser consolado
são o conjugar do Verbo
que também se diz Amar?
Teu, Francisco
Ângela Oliveira, asm