
Foi há dez anos, no nonagésimo aniversário da morte do Pastorinho de Fátima, que recebi o primeiro convite para falar do Francisco.
Ainda não era vice-postuladora. Recordo-me que, quando o Santuário de Fátima me lançou este desafio, fiquei perplexa e pensei: “uma hora para falar apenas do Francisco?”
O que se pode dizer do Francisco durante uma hora? Foi, então, a primeira vez que li as memórias da irmã Lúcia em busca apenas da figura Francisco.
Ao preparar esta pequena partilha, reli os depoimentos das testemunhas para o seu Processo de beatificação[1] e constatei que várias pessoas pensavam como eu, naquela altura.
Uma sua prima depôs: “não tenho muito a dizer dele... conheço muito pouco porque era reservado, fazia todo o esforço por ficar atrás da prima e da irmã...”.
Uma outra testemunha afirmou: “recordo-me de ter visto a delicadeza humilde com que ele procurava ficar esquecido e na sombra, para pôr a prima e a irmã em primeiro lugar”.
E o testemunho de uma outra senhora:
“Coisa extraordinária! Depois das aparições vi-o muita vez mas quase se não dava por ele, tão humilde era.”
Sim, como eu tantos pensaram: quase se não dava por ele.
Havia um silêncio em torno da vida do Francisco que poucos se deram conta da sua riqueza.
A própria Lúcia admite: “Só depois da sua morte, à medida que eu fui crescendo, é que me apercebi melhor de muitas das suas qualidades”.
Mas Deus, que “exalta os humildes”, como canta a Senhora Vestida de Sol no primeiro Magnificat da história, permitiu que o Francisco Marto brilhasse como uma luz amiga que se acendeu no coração de tantos irmãos e irmãs na fé.
Então, O que se ouve no silêncio em torno de vida de Francisco Marto?
1. A sua Humildade
O primeiro aspeto que me chamou a atenção foi a sua personalidade, era reservado, sereno, calmo, sossegado, pacífico. Este seu modo de ser foi-se desenvolvendo numa das suas virtudes mais profundas: a humildade.
Sim, a humildade, tão pouco de moda no nosso tempo, mas essencial para a intimidade com Deus, para a santidade.
A sociedade do nosso tempo gosta de se mostrar, de se exibir, de se expor...
O Francisco quer ficar esquecido, quer esconder-se atrás da Lúcia e da Jacinta.
Somos educados e estimulados a sermos os primeiros e os melhores... o Francisco quer ser o último, não por um complexo de inferioridade, mas porque descobriu Deus, o único Senhor da sua vida. Mais, descobriu Deus e percebeu a dinâmica da kenose do seu Deus... e quis imitá-Lo.
Ouçamos o testemunho da Lúcia:
“A princípio o Francisco dizia que não compreendia como é que Deus, sendo tão grande, cabia num sacrário tão pequeno, nem porque é que, estando ali vivo, a gente O não via, nem Ele vinha falar connosco. Depois, disse-me compreender já como era, pois que sendo Deus tão grande e poder fazer tudo quanto queria fazia-Se pequeno e escondia-Se”.
O que se ouve no silêncio da vida do Francisco?
Que Deus, sendo tão grande e podendo fazer tudo, fazia-se pequeno e escondia-se.
É a história do Francisco: como Jesus, fez-se pequeno e escondeu-se.
Com Jesus, hoje, podemos bendizer o Pai, porque continua a revelar os mistérios do Reino aos pequeninos, aos pequeninos como Francisco!
2. O contemplativo de Deus e do seu amor
Alguém refere que o Francisco dizia:
“Se vocês vissem o que eu vi, se vocês soubessem o que eu sei, não faziam o mal.”
[depoimento de uma prima].
Quantas vezes, ao longo deste 10 anos lhe perguntei: o que viste Francisco, o que soubeste?
Viu Deus, naquele Luz que Nossa Senhora lhes meteu no peito e que lhe parecia triste, e queria consolá-lo. Sentiu a solidão do Jesus Escondido e queria fazer-lhe companhia.
Queria tornar-se solitário como Jesus solitário no Sacrário, silencioso com Jesus silencioso.
Viu o essencial da existência humana: Deus, o seu amor, e viveu a partir daí, numa crescente unidade interior, como atesta uma testemunha:
“O que mais impressionava era o verificar a transformação profunda realizada na alma e na vida do Servo de Deus após as aparições. Conservando muito embora o seu feitio vivo, tornou-se muito mais piedoso e concentrado”.
Cem anos depois, o nosso mundo ruidoso precisa de aprender o silêncio do Francisco, cem anos depois este mundo fragmentado e, deixem-me dizer, a Igreja ferida e dividida, pode aprender com a coerência de vida e a unidade interior de São Francisco Marto.
Cem anos depois, a nossa sociedade tão materialista, presa a coisas, a bens materiais, a cargos e posições, precisa de aprender com a liberdade interior deste menino que dizia à Lúcia, com toda a inocência e simplicidade:
“Esta gente parece rica, mas é mais pobre do que nós porque precisa de mais coisas do que a gente”.
É uma das definições mais bonitas da pobreza, que encontrei.
Não se trata de ter muitas ou poucas coisas, trata-se de usar delas com liberdade, trata-se de não precisar de as ter... e ser feliz assim.
O que se ouve no silêncio da vida do Francisco?
Que a liberdade interior nos conduz à alegria de não precisar de muitas coisas.
Que a coerência e a unidade de vida ajudam a curar as divisões do nossos mundo.
Mas penetrando ainda mais na expressão do Francisco: “se vocês vissem o que eu vi, não faziam o mal”, compreendemos uma das dinâmicas da ascese e de conversão que o nosso tempo precisa de conhecer.
O Francisco viu a luz de Deus, viu o amor de Deus, e contemplando este amor e esta bondade, não pode mais “fazer o mal”. O Francisco entendeu que há só uma forma de combater as trevas [as trevas do mal, do pecado]: abeirar-se da luz!
Tenho para mim que esta é uma das formas do agir de Deus, em momentos onde as trevas envolvem a humanidade: Deus acende uma luz na vida dos seus santos e com eles continua a iluminar.
Há cem anos, o mundo encontrava-se envolvido nas trevas do mal da Primeira Guerra Mundial e Deus suscitou estes dois santos: Francisco e Jacinta, a quem o papa que os beatificou chamou de “duas candeias a iluminar as sombrias horas da humanidade inquieta”.
Tenho para mim que hoje, hoje mesmo, nesta hora dolorosa da Igreja ferida, Deus continua a querer suscitar na vida de seus amigos, uma luz que anime na esperança tantas outras vidas feridas e magoadas, desencantadas e sem norte....
O que se ouve no silêncio da vida do Francisco?
Que ao aproximar-me da Luz, que é Deus, as trevas ocuparão cada vez menos espaço dentro de mim.
3. Viver tendo o céu como horizonte
O Francisco desejava ardentemente ir para o céu. Desde que Nossa Senhora prometeu levá-lo em breve para lá, quase nada mais lhe preenchia o pensamento e o desejo de coração.
E viver, tendo como horizonte a eternidade, dá uma dimensão completamente diferente à sua vida.
Por um lado, o Francisco relativiza todas as dificuldades, sofrimentos, humilhações e desprezos dos que não acreditavam neles:
“E isso que importa? O que eu quero é ir para o céu...” era a sua reposta quase invariável diante das contradições.
Diante do mistério de Deus, o sofrimento, vivido com Deus, torna-se pequeno, não lhe tira a paz e a alegria imensa de se saber amado por Jesus e por Nossa Senhora, que era tão boa e tão bela.
Por outro lado, perde um dos maiores medos da nossa existência: o medo da morte
Conta a Lúcia: “Na prisão disseram-lhe que o iriam fritar em azeite, juntamente com a irmã que, como ele, era teimosa. Perguntei-lhe se tinha sentido medo. Respondeu-me que não. Só se lembrou de que em breve estaria no Céu junto de Nossa Senhora e de Nosso Senhor de quem ele gostava tanto.”
O que se ouve no silêncio da vida do Francisco?
Que viver, tendo como horizonte o céu, é viver na alegria dos que se sabem filhos de Deus, é saber que, independentemente do que venhamos a sofrer, ninguém nos pode tirar a nossa alegria.
É não ter medo de morrer.
Miguel Torga escreveu no início de um dos seu poemas:
“Tens nos olhos a luz que me faltava
Agora posso ver o que não via...” [Retrato]
O Francisco não ouvia... por isso dele só podemos ouvir o silêncio.
Mas via.
Durante as aparições do Anjo e de Nossa Senhora, encheu o seu olhar da luz de Deus.
Durante as inúmeras horas de adoração eucarística preencheu o seu olhar com o Rosto de Jesus.
Durante as incontáveis horas, na Serra D’Aire, o seu olhar transbordou na contemplação do amor de Deus que se exprime na criação.
Não ouviu... mas o seu olhar encheu-se da luz que é Deus!
Cem anos depois, digo, quase em jeito de oração, agradecendo o dom da vida do Francisco na nossa vida:
Francisco,
“tens nos olhos a luz que nos faltava.
Agora podemos ver o que não víamos”.
Acompanha-nos na nossa peregrinação, em busca do Rosto de Deus, até ao dia da nossa páscoa.
Ângela de Fátima Coelho, asm
4 de abril de 2019